Bairro Menino Deus, antiga rua 13 de Maio (atual avenida Getúlio Vargas), s.d. Autor desconhecido.
SONETO
O Menino Deus.
por Letícia Wierzchowski

O mais antigo arraial de Porto Alegre, o Menino Deus já nasceu residencial. Seu nome provém da devoção dos habitantes da Ilha Terceira do Arquipélago dos Açores – fé que trouxeram junto aos seus poucos pertences quando colonizaram o sul do Brasil.

Os eixos de formação do arraial do Menino Deus foram a Rua de Caxias (José de Alencar) e a Rua Santa Tereza (Avenida Getúlio Vargas), ambas abertas em 1845 e 1848, no final da turbulenta Revolução Farroupilha. Mas o coração do pequeno povoado foi a capelinha do Menino Deus, construção erguida em estilo gótico e inaugurada na noite do Natal de 1853, na esquina das duas ruas fundadoras do bairro. Essa capelinha seria o centro das atividades comunitárias, ali ocorriam as festas populares, quase todas de cunho religioso, mas tão importantes que chegavam a atrair moradores do Centro Histórico e de outras regiões da cidade ainda em formação

As festas natalinas eram o ápice do calendário do Menino Deus – a cada ano, as comemorações se iniciavam com a Missa do Galo, na noite de 24 de dezembro, e iam até 5 de janeiro, Noite dos Reis. Até 1870, a procissão de Navegantes, no dia 2 de fevereiro, também tinha a capela do Menino Deus como seu ponto de partida, mas depois foi transferida para o bairro Navegantes.

Na frente da capelinha, ficava a Praça Menino Deus, doada ao município pelo Barão de Guaíba, o Dr. Manoel José de Campos, no ano de 1860. Ao redor dessa praça, aglomeravam- se as residências da região. O doutor Manoel e seus herdeiros forneceram ao município, durante muito tempo, aterro e cascalhos extraídos do morro que ficava atrás da igrejinha, de propriedade da família. A esposa do importante doutor Manoel José de Campos, Antônia Clara, era bisneta de Jerônimo de Ornelas – donatário da Sesmaria de Sant’Ana, sobre a qual teve início o povoamento de Porto Alegre. Era, também, irmã de Onofre Pires, um dos líderes da Revolução Farroupilha, falecido em consequência de um duelo travado com seu primo, o General Bento Gonçalves, após desavenças mútuas durante a longa guerra contra o Império.

As comemorações de festas natalinas, agregadas à construção das casas ao redor da capela Menino Deus e à abertura de novas ruas, propiciaram o desenvolvimento da região, cuja ligação com o centro da cidade era feita por pontes sobre o Riacho – hoje, o Arroio Dilúvio. A primeira das pontes do bairro ficou pronta em 1850; mas, devido à fragilidade das construções da época e à força das águas, várias tiveram de ser refeitas. Era grande o movimento nas pontes em direção ao Menino Deus; mas, nas festividades natalinas, os muitos visitantes que vinham de vários lugares para o bairro utilizavam também o transporte fluvial, com o aportamento de barcos na Praia de Belas.

Primeira igreja do Menino Deus, década de 1910/1920. Foto de Virgílio Calegari. Acervo Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.
Morro Santa Tereza, TV Piratini, aterro Beira-Rio, bairro Menino Deus, 1960. Foto de Léo Guerreiro e Pedro Flores. Acervo Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.

Em 1864, o Menino Deus foi o primeiro bairro de Porto Alegre com serviço de transporte coletivo terrestre, as “maxambombas”, consideradas por alguns historiadores como os primeiros trens urbanos da América Latina, posteriormente adotadas por outras capitais brasileiras, como o Recife. As maxambombas eram pequenas locomotivas de madeira com cabine descoberta que puxavam dois ou três vagões de passageiros. Em 1873, foram substituídas pelos bondes de tração animal da Companhia Carris Porto-Alegrense, constituída ainda no ano anterior, após reconhecimento por decreto imperial.

Segundo os cronistas da época, o primeiro bonde transitou “no dia de sua espetacular inauguração, festivamente ornado, com um vistoso carro onde se via atrelada uma soberba parelha de cavalos brancos”. Essa parelha foi só para a abertura do transporte; habitualmente, a tração era realizada por mulas ou burros, que eram mais resistentes. A viagem era “longa”; em 1881, um desses “expressos” de tração animal teria partido às 18h da Praça da Alfândega para chegar à meia-noite no final da linha do Menino Deus. Achylles Porto Alegre, em História Popular de Porto Alegre, faz menção a “um veículo que, de vez em quando, parava para dar descanso aos animais, que iam pondo a alma pela boca”. Ao final da viagem, o passageiro sentia-se quase morto, “doía-lhe o corpo todo, desde os pés à cabeça, como se houvesse levado uma camaçada de pau”.

Com o aumento das casas e a melhoria do transporte, no ano de 1869, mais quatro ruas foram abertas no Menino Deus, todas com nomes de heróis da Guerra do Paraguai, que estava em curso: Marcílio Dias, General Caldwell, Barão do Triunfo e Visconde do Herval.

Crescia mais e mais o número de habitantes do Menino Deus – em 1892, segundo a Estatística Predial, a Rua Caxias (José de Alencar) possuía 65 casas térreas e sete assobradadas. Em 1908, além da construção da segunda igreja e do ajardinamento da Praça Menino Deus, deu-se o surgimento do bonde elétrico, que perdurou até 1970 e fez com que o bairro passasse a atrair famílias de costumes mais sofisticados, que desfilavam por suas ruas em finas carruagens.

Essa gente elegante frequentava o Teatro Félix da Cunha, construído em 1887 ao lado da igreja (o primeiro teatro de bairro da história de Porto Alegre), e o Prado Rio-Grandense, inaugurado em 1881 – local muito importante para o desenvolvimento da região. Ali, além de corridas de cavalos, eram realizadas as “cavalhadas”, celebrações portuguesas inspiradas em torneios medievais, nos quais se simulava a luta entre cristãos, vestidos de azul, e mouros, trajados de vermelho. O Prado funcionou até 1909, quando cedeu espaço aos pavilhões destinados à 1a Exposição Agropecuária, a atual Expointer.

Em 1911, um acontecimento sensacional agitou o Menino Deus: o Correio do Povo de 17 de novembro anunciava o primeiro voo em um avião a ser realizado em Porto Alegre. O avião Blériot, pilotado pelo italiano Bartolomeu Cattaneo, veio desmontado por via marítima, foi remontado na capital e decolou do antigo Prado Rio-Grandense. Porém, em uma das apresentações, um vento forte obrigou Cattaneo a um pouso forçado no Morro do Menino Deus, causando grande espanto aos seus moradores.

Avenida Getúlio Vargas, bairro Menino Deus. s.d. Autor desconhecido.

Em 1927, no parque de exposições do Menino Deus, deu-se início à era do automobilismo: foi organizada a 1a Exposição Rio-Grandense de Automóveis – empresas e automóveis famosos como Dodges, Cadillacs, Studebakers, Fords, Chryslers foram apresentados ao público presente. Com o sucesso da exposição, dez dias depois, realizaram-se provas automobilísticas de velocidade na região do Cristal e Cavalhada. O vencedor foi o carioca Irineu Corrêa, que pilotava um Studebaker e terminou carregado em triunfo pelo público.

Outro local ligado ao esporte que impulsionou o bairro Menino Deus foi o Estádio dos Eucaliptos, do Sport Club Internacional, inaugurado em 1931 com um Gre-Nal de vitória colorada por 3 a 0. O estádio sediou duas partidas da Copa do Mundo de 1950, a quarta da história: Iugoslávia contra México, 4 a 1, e Suíça contra México, 2 a 1, e teve sua última partida no ano de 1969.

O aterro da Praia de Belas e o consequente prolongamento da Av. Borges de Medeiros, em 1950, permitiram ao Menino Deus um novo acesso e facilitaram sua expansão e urbanização. Por fim, implementou-se a Avenida Érico Veríssimo, modificando os limites do bairro com a Azenha, local antes constituído por terrenos depreciados e lamacentos.

Em 1970, a capelinha gótica que dera origem ao Menino Deus foi demolida, causando muita revolta. Segundo o historiador Sérgio da Costa Franco, foi “um caso de desfiguração completa de um espaço urbano, praticada com abuso de direito”. Outra capela, de arquitetura moderna e embutida em um edifício condominial, tomou o lugar da relíquia arquitetônica, deixando saudades nos habitantes da região.

Um caso de amor com o bairro, o Riacho, atual Arroio Dilúvio, também causou lágrimas aos seus moradores; ao longo do tempo, inundou algumas vezes as ruas adjacentes, mas também povoou as tardes das crianças da região, calentou noites e beijos de namorados com seus recantos bucólicos, e foi muitas vezes pintado por artistas plásticos e contado por escritores locais. Em 1926, escrevia Augusto Meyer: “Ao luar, o Riacho espalha miçangas trêmulas, que tecem na água rosários luminosos. É como se os velhos salsos, tecelões noturnos, andassem fabricando uma renda finíssima para a miséria do recanto. Eles mergulham na água as suas cordas, querendo enfiar as miçangas em colares (…) como um beijo na penumbra”. Também Álvaro Moreyra se deixou sensibilizar pelo Riacho em uma de suas crônicas: “Lembro-me de você, Riacho… Não porque fosse histórico, ou porque fosse artístico. Eu o amei desde pequeno quando ia à Rua da Margem (…). Quero-lhe bem há cinquenta anos, pela sua humildade, pela sua poesia. Você não é um pedaço de água a andar vagarosamente entre duas beiras de terra da minha terra. Você, com aquela mesma ponte, aqueles salgueiros iguais e o céu em cima, mudando sempre, sempre outro, sempre diverso, você é uma criatura que envelheceu como se envelhece entre nós, os resumidos em forma de gente”.

Menino Deus, um bairro cheio de história, de tempo e de poesia. Foi cantado também por Caetano Veloso que, ao visitar Porto Alegre no ano de 1982, viu de dentro de um táxi uma placa que dizia: “Menino Deus / Tristeza / Ipanema”. Espantado com a poesia geográfica da cidade, depois de visitar os famosos bares que o bairro abrigava na época, Caetano compôs a música Menino Deus. “Um corpo azul dourado, Um porto alegre é bem mais que um seguro, Na rota das nossas viagens no escuro, Menino Deus, Quando tua luz se acenda (…)”

A cidade ganhou de Caetano Veloso uma homenagem ao seu arraial mais antigo. Sempre vivo, sempre intenso, sempre encantador. Um bairro “de terna alegria”, que nasceu de uma devoção, que nasceu de um menino.

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