Passagem e tomada da ponte sobre o arroio Itororó. Angelo Agostini.
SONETO
Itororó, uma rua, uma história.
por Letícia Wierzchowski

Batizada com o nome de uma das mais importantes batalhas da Guerra do Paraguai, a rua Itororó começa na Barbedo e segue até a José de Alencar. Foi criada nos tempos do final do Império e já constava da planta municipal de Porto Alegre em 1888; porém, segundo documentos da época, a Itororó demorou bastante a ser povoada.

Pouca gente sabe que a Guerra do Paraguai foi o maior conflito armado ocorrido na América Latina, e que seu custo, mortandade e alianças políticas trouxeram importantes mudanças para os caminhos que o Brasil haveria de tomar. Por conta do desfecho da guerra contra o ditador Solano López, a monarquia brasileira se enfraqueceria e a República seria proclamada em novembro de 1889. Além disso, o país perderia 50 mil almas em solo paraguaio, uma grande parte delas em consequência do cólera morbo, que grassou entre os exércitos, dizimando suas fileiras. Os custos dessa guerra pesaram enormemente nos cofres imperiais – o gasto no conflito foi onze vezes superior ao orçamento anual do país no ano de 1864.

A Guerra do Paraguai foi um divisor de águas, cujos respingos se espalharam por todos os recantos do Império, marcando histórias, destruindo famílias e sonhos, batizando lugares e caminhos – como no caso da rua Itororó.

Li muito sobre Itororó quando escrevi Um farol no pampa, meu romance sobre esta guerra. Foram seis anos de feroz carnificina, resultando no completo aniquilamento do Paraguai. E foi em dezembro de 1868 que se travou a famosa Batalha de Itororó. O Marquês de Caxias e Osório, o Marquês do Herval, comandavam a tropa brasileira que precisava atravessar uma ponte estreita para chegar à linha inimiga de Piquissirí. Sob tal ponte é que corria o arroio Itororó; um riozinho de quatro metros de largura no meio das matas paraguaias que precisava ser cruzado por 12 mil almas. Mas a pontezinha era defendida por 5 mil paraguaios dispostos a tudo. Nesse arroio, travou-se então uma batalha de mais de cinco horas – o acidentado terreno era favorável à defesa, mas não ao ataque.

Itororó foi a primeira das três batalhas ocorridas na chamada Dezembrada, uma série de conflitos vencidos pela Tríplice Aliança que levou à rendição de Angostura, quando tropas paraguaias se entregaram aos aliados sem dar um único disparo – o exército inimigo já estava praticamente composto por garotos imberbes, que lutavam com fúria até a morte, visto que Solano López, ditador com tintas de Nero, mandava matar por “dá lá aquela palha” desde os seus generais e oficiais até os seus parentes de sangue. Assim, para os paraguaios, o destino era mesmo morrer ou morrer.

Marquez de Caxias, 1861. Sebastien Auguste, Sisson.
General Manuel Luiz Osorio, 1866. Brás Inácio de Vasconcelos.

O ápice da Batalha de Itororó se deu sob o comando de Caxias, que investiu contra os inimigos entrincheirados de espada empunhada, gritando: “Sigam-me os que forem brasileiros!”. Os aliados atacaram com tudo, expulsando as tropas e perseguindo os fugitivos. Itororó teve 1.806 baixas de brasileiros, entre mortos e feridos.

Ainda assim, naquela guerra, havia momentos de alegria e de festividades, como conta José Bernardino Bormann, militar do 5o Batalhão de Voluntários da Pátria (outro nome que batizou importante rua da nossa capital), sobre a noite anterior à Batalha de Itororó: “Os soldados de infantaria dançavam ao redor de fogueiras, alguns batendo pandeiros, outros ao som de violas; a cavalaria esperava o churrasco; parte entoava as canções aprendidas na meninice ou versos improvisados, de caráter épico, em que os heróis eram os seus bravos generais. E a noite parecia correr rápida.”

O Rio Grande do Sul, que tinha então em torno de 440 mil habitantes, enviou para o Paraguai mais de 33 mil homens durante a guerra – 7% dos gaúchos pegaram em armas, fomos a província que mais forneceu soldados ao Império. Entre eles, havia muitos descendentes de imigrantes alemães, e um número ainda maior de negros escravizados, que recebiam alforria do governo, caso quisessem ir à luta no lugar de seus proprietários.

Dos gaúchos combatentes, o mais famoso foi Manuel Luís Osório, o Marquês do Herval. Durante uma das batalhas, Osório teve o rosto dilacerado por um tiro, mas, corajoso – sua alcunha era “O Legendário” – ele seguiu lutando até deixar a refrega derreado pela hemorragia. Apesar de grande soldado, Osório foi um homem da paz. Em seu monumento, na Praça da Alfândega em Porto Alegre, está escrita uma frase de sua autoria: “A data mais feliz de minha vida seria aquela em que me dessem a notícia de que os povos civilizados festejavam a sua confraternização queimando os seus arsenais.”

Planta da Batalha de Itororó, 1869. Angelo Agostini.

Itororó ficou famosa, e suas repercussões extrapolaram o universo militar, passando a fazer parte do folclore. Existe até uma cantiga:

Fui no Itororó beber água e não achei,
Achei bela morena que no Itororó deixei.
Em Santa Catarina, a versão da toada é:
Eu fui lá no Tororó, beber água e não achei,
Ver Moreno e Caballero, já fui, já vi, já cheguei.

O verso “beber água e não achei” faz alusão às ensanguentadas águas, pois o riacho ficou cheio de mortos e feridos. Moreno e Caballero foram os dois comandantes paraguaios da batalha. “Já fui, já vi, já cheguei” seria uma alusão à frase veni, vidi, vici (vim, vi e venci), dita por Júlio César ao descrever sua vitória na famosa Batalha de Zela.

E esta é a história de Itororó, quem quiser que conte outra. Quando eu era menina, de maria- chiquinha nos recreios da escola, brincávamos de roda ao som de cantigas como Ciranda- cirandinha e Itororó, sem sabermos que, entre risos e palhaçadas infantis, evocávamos um passado de batalhas, de corajosos homens que lutaram e morreram, alguns deles sem nem saber direito por quê.

Viraram versos, cantiga de outros tempos; viraram rua, pedra e chão.

Viraram tempo.

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